Em
uma manhã dessas sentado no banco do
carro em mais um engarrafamento de costume na ponte Rio-Niterói enquanto
me deslocava para o trabalho me deparei em mais um maluco devaneio. Me peguei
pensando desde o começo da minha vida profissional, lá naquele sobradinho velho
da Rua Teofilo Otoni onde meus olhos acompanhavam com detalhes cada comando
dado pelo meu instrutor naquele teclado gigantesco e monitor verde que refletia
nos seu óculos fundo de garrafa. Estava fascinado com aquele homem e quando
crescesse era igual a ele que queria ser.
Então foquei naquele
exemplo e comecei a galgar cada pedacinho de chão. Estudei, estudei mais um
pouquinho, continuei estudando. Consegui meu diploma de nível superior e continuei
estudando mais ainda. Foram anos e anos de estudos e praticas que me tornaram
tão bom quanto meu guru. O tempo passou tão rápido quanto meus pensamentos que foram
interrompidos por buzinas dos apressadinhos atrás de mim. - “PASSA POR CIMA!” –
Enquanto acelero para acompanhar a procissão de carros me indago se valeu a
pena tudo aquilo. Dos estágios do ciclo da vida que aprendemos na escola já
passei por três agora é envelhecer e morrer. Por isso a minha indagação, a sete
palmos de areia estarão comigo todo aquele conhecimento que adquiri durante esse tempo e todos aqueles anos que dei o meu suor trabalhando. Valeu a pena?
Sem saber minha pergunta
seria respondida dias depois em um simples olhar acompanhado de um sorriso.
Caixa Auxiliadora dos Pobres de São Gonçalo criada na década de 30 pelos Varejistas de São Gonçalo. Esta construção já foi demolida para ampliação. Foto: Reprodução
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Em 1931 nascia a “Caixa
Auxiliadora dos Pobres” criada pelos varejistas de São Gonçalo. Tinha o
objetivo de dar aos mendigos uma esmola semanal, porem visto que muitos não
tinham família nem lar, transformaram-na em “Asilo Amor ao Próximo” e para angariar
recursos foi criado um “Livro de Ouro” e assim puderam comprar a sua sede bem
no centro de São Gonçalo na Rua Feliciano Sodré, nº 04 localizada entre a prefeitura e a praça Zé
Garoto.
Asilo Amor ao Próximo. Espaço ampliado. Foto: Reprodução |
No ano de 1969 o Asilo
passou pelo pior momento de sua existência, com a morte e afastamento dos
fundadores chegou a estar completamente abandonado com apenas 11 velinhos
sofrendo de maus tratos. Foi então que um casal visitando o asilo vendo aquela
situação resolveu ajudar. Criaram um “Departamento de Cooperadoras” com
senhoras voluntarias que administram a instituição sem nenhum beneficio. No
inicio apenas 15 e hoje perto de completar 50 anos com mais de 160 voluntarias
que administram e trabalham para que não falte nada para as internas. Com a
reforma do estatuto passou a ter a atual denominação, Instituição Cristã Amor
ao Próximo (ICAP), e passou a trabalhar apenas com senhoras acima de 70 anos.
Sede da Instituição Cristã Amor ao Próximo - ICAP. Local: Rua Feliciano Sodré n. 4, São Gonçalo-RJ. Foto: Reprodução |
Meu contato com o ICAP foi
numa sexta-feira fria quando minha sogra que faz trabalhos sociais em igrejas
me pediu um favorzinho. Sabe como é, não se nega favor a sogra.
- Alex, você pode, por
favor, entregar essas sacolas de agasalhos no Asilo Amor ao Próximo?
Ué, será que deu pane na
vassoura? Pensei.
- Claro minha sogra, você não pede, você manda.
Deixando a brincadeira de
lado, afinal eu adoro a minha sogra e nem sei por que fiz esse comentário da
vassoura no texto. Deve ter sido para torna-lo mais bem humorado e atrativo. Enfim,
eu não sabia, mas a minha ida ao ICAP seria inesquecível e cheia de
aprendizado.
A viagem não foi longa, já
que meus sogros moram a 10 minutos do centro de São Gonçalo e logo estava
atravessando com aquelas sacolas nas mãos o portão verde onde na fachada lia-se
Pavilhão de Bazares Beneficentes. Ao atravessar a porta um barulho ensurdecedor
de máquina de costura e meus olhos passeando por todo ambiente só viam araras de
roupas. Até que na segunda inspeção vejo no cantinho uma máquina de costura e
um tufinho de cabelo branco como neve escondido por detrás.
- Boa tarde?
E o som da máquina
continuava sem interrupção. Então quase gritando.
- Boa tarde, senhora?
E ali permaneceu sem
nenhuma reação atrás da barulhenta maquina de costura. Caminhei até ficar de
frente e pude perceber que se tratava de uma senhora na casa dos 60, mas com
uma vitalidade no manejo daquela máquina. Suas mãos dançavam na bancada
segurando uma peça de roupa ao som daquela medonha melodia ensurdecedora.
Quanta pratica tinha aquela senhora. Com certeza se fosse eu no seu lugar já
teria meus dedos furados antes mesmo de dar o primeiro ponto.
Fique ali admirando por quase 20 segundos, até
que ela percebesse a minha presença. Então com a mão direta empurrou os óculos
para pontinha do nariz inclinou a cabeça um pouco para baixo e me olhou por
cima dos óculos.
- Boa tarde, seja muito
bem vindo. Em que posso ajudar?
Aquela boas vindas mexeu
comigo, há muito tempo não via uma recepção com tanta educação. Estamos vivendo
um tempo de, E ai?, O que foi?, Qual é?
- Boa tarde, me chamo Alex
e vim até aqui a pedido de minha sogra que pediu para que entregasse essas duas
sacolas de agasalhos para doar ao asilo.
- Que bom, tem feito muito
frio à noite e os agasalhos vão ajudar a esquentar quem precisa. A sua sogra é
um anjo, Alex.
- Pois é, eu é que sei.
Ela sorri e com muita
dificuldade levanta da cadeira e caminha até uma porta que dá para os fundos do
bazar.
- Vamos lá Alex, vou te
mostrar a nossa casa. A propósito me chamo Lourdes.
Bosque da Paz - Largo do Chafariz - ICAP. Foto: Reprodução |
Quando atravesso a porta
dos fundos do bazar me deparo com um jardim lindo, com muito verde e muitas
flores. No centro do jardim um chafariz com plantas jiboias escorregando do
centro da escultura.
- Chamamos de bosque da
paz e largo do Chafariz. Dona Maria Amélia adorava cuidar de cada planta desse
jardim. Acho até que tinha o dom de ouvi-las.
- Maria Amélia?
Maria Amélia (1918-2013) foi diretora da Instituição Cristã Amor ao Próximo (ICAP) por 48 anos |
- Sim, Maria Amélia foi a
grande responsável pela transformação da nossa casa, foi ela e seu marido que
em visita criaram o Departamento de Cooperadores. Departamento que ela presidiu
com muito vigor por 48 anos até o fim de sua vida no ano passado.
Lourdes foi subindo a
caminho das instalações.
- Vamos lá, vou te mostrar
onde as vovós descansam.
Um pequeno portão de ferro
dividia uma varandão com várias cadeiras e poltronas.
- Aqui são três lares, os
quartos são para quatro senhoras, com uma suíte. O primeiro lar é para as que precisam
de cuidados especiais como banho e necessitam que as vistam. O segundo lar é
para aquelas que são lúcidas, passeiam, tomam banho sozinha. E o terceiro é o
que chamamos de “remanso” que é para as voluntárias que trabalharam na casa por
mais de 10 anos, gratuitamente, e que depois dos 65 anos de idade precisam de
um lugar para morar. Esse é o meu caso Alex.
Eu e minha cara nítida de
espanto fomos caminhando até a varanda onde com apenas um gesto de mãos Lourdes
me pediu para sentar ao lado de uma senhorinha, essa com mais idade. Parecia
estar entrando na casa dos 90 anos.
- Então trabalha por 10 anos sem receber nada em troca
Lourdes?
- Eu trabalho por exatos
30 anos e quem disse que não recebo nada em troca? Todos os dias recebo algo
que dinheiro nenhum é capaz da pagar.
Ela olhou a senhora do meu
lado, deu um sorriso e levantou mais uma vez com dificuldade.
- Alex, vou pegar um café
pra gente. Enquanto isso faz companhia a Bethânia. Ah, ela é surda, mas se
comunica muito bem.
Enquanto Lourdes se
afastava, meus olhos foram ao encontro daquela que me fazia lembrar minha
própria avó. E não precisou de nada a mais do que um simples olhar e um
sorriso. Bethânia pegou na minha mão e mesmo sem pronunciar uma palavra, eu sabia
o que ela estava me dizendo. Tinha razão Lourdes quando disse que Bethânia era
muda, mas se comunicava muito bem. Ela estava me agradecendo. Agradecendo por
estar ali ao lado dela, de conhecer a sua casa e compartilhar aquele momento.
Acho que estava sendo
muito egoísta nos meus questionamentos, pois o que fiz foi trabalhar e ganhar experiencia para que pudesse dar o melhor para minha família. E os que trabalham e dão o melhor por pessoas que muitas vezes nem conhecem? Olho pro lado e vejo o exemplo dessas
mulheres que passaram a sua vida trabalhando com amor em prol de outras
pessoas. Vejo o exemplo da minha sogra que dedica o seu tempo recebendo e
separando roupas e alimentos na igreja para repassa-los para quem precisa. Vejo
o exemplo de Maria Amélia que até o seu ultimo dia esteve presente na vida de
cada uma das internas do ICAP. Vejo o exemplo de Lourdes que dedicou 30 anos de
sua vida costurando agasalhos para que muitas vovós não tivessem uma noite
fria. E Bethânia? Essa trabalha com o sorriso e com olha e nos prepara para
encarar uma vida regada de alegrias e esperanças e cheia de amor ao próximo. E
mais uma vez meus devaneios são interrompidos pelas buzinas dos apressadinhos,
mas dessa vez não estou nem ai. – “PASSA POR CIMA!”
É CLARO QUE VALEU A PENA.
(arte final, Wilson Vasconcelos)
(arte final, Wilson Vasconcelos)
Sobre o autor: Alex Wölbert
Alex Wölbert é colaborador do Blog do Vovozinho, também do Blog do Tafulhar Considerado um dos maiores cronistas do Leste Fluminense, sobretudo, acerca da cidade de São Gonçalo-RJ. Faz parte do ProjetoRecicla Leitores. Facebook: Alex Wölbert
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