Cemitério
não é o lugar onde apenas se colocam os corpos daqueles que já cumpriram sua
missão na Terra. Se foi foco de crendices (tais como a existência de fantasmas,
mortos-vivos, etc.) até o passado recente, tal fase está superada, mas ele tem
importância não só pelo respeito que se deve aos mortos, quanto pelo que pode
representar para a História e a Arte, além de, nos países mais desenvolvidos,
ser também atração turística.
São
Gonçalo não foge à regra, embora aqui, região economicamente pobre, não haja
tantos exemplares de arte tumular como em outras cidades, até porque, em
momentos passados, perdemos várias obras de arte, pela insensibilidade de
burocratas que as destruíram para abrir espaço a novos sepultamentos, ou que
estão relegadas ao abandono pelas autoridades.
Entre
estas últimas, o caso mais exemplar é o do mausoléu do Cônego Goulart, a que
vou me referir adiante, depois de um breve intróito sobre a história dos
sepultamentos na cidade, aqui iniciados, como em outras partes do país e em
todo o mundo ocidental, em torno das igrejas católicas, ou mesmo no interior
delas. Aqui, desde a colonização, os enterros eram em volta da Matriz de São
Gonçalo de Amarante. E sua administração cabia à Câmara Municipal de Niterói, a
partir da criação da Vila Real da Praia Grande, por Dom João VI, em dez de maio
de 1819. Em meados do século XIX, por questão de higiene pública, a prática
começou a ser condenada na Corte e, em abril de 1852, o presidente da província
João Pereira Darrigue Faro encarregou Luiz Pedro Tavares (médico e vereador) de
dar início às obras do cemitério da freguesia de São Gonçalo, para encerrar o
da igreja matriz, nomeando comissão, composta pelo próprio, o Barão de São
Gonçalo e o coronel Francisco Cândido da Fonseca de Brito para obter fundos
destinados à obra. Ocorre que o dono do terreno (no caminho do Arraial do
Boaçu, hoje Rua Sá Carvalho), João Ferreira Pinto, opôs embaraços, porque
queria doá-lo, mas só em parte e a Província desejava toda a área. Após
negociações, em 20 de julho era feita a doação pretendida pelo proprietário e a
Província comprou a parte restante. Mesmo assim, nada foi feito, já agora pelo
protesto dos vizinhos.
Em 19 de
setembro de 1855, o presidente da província Visconde de Baependy baixou o
decreto nº 776 proibindo enterros nas igrejas da Imperial Cidade de Niterói e
determinou a contratação de irmandades ou particulares para fazê-lo. Embora São
Gonçalo fosse, à época, distrito da capital da província, aqui continuou tudo
na mesma. Treze anos depois, em 15 de outubro de 1868, a Câmara Municipal de
Niterói solicitou à província a criação dos cemitérios de São Gonçalo e de
Cordeiros, mas nada foi alterado até 1877, quando o presidente da província,
Francisco Antônio de Souza, determinou a construção do primeiro deles,
concluída em oito de setembro daquele ano, data em que começou a funcionar.
Dois anos depois, o presidente da província Américo de Andrade, pela lei nº 2434,
de 15 de dezembro de 1879, concedeu terrenos extra-muros do cemitério público
para que as irmandades de São Gonçalo, do Santíssimo Sacramento, de São Miguel
e Almas e do Divino Espírito Santo construíssem seus campos santos, incorporados
ao principal, após o advento da República.
Não era lá
essas coisas, tanto que, em 1901,
a capela mortuária (então chamada de necrotério) do hoje
denominado Cemitério Principal era uma casa velha, em ruínas, o que levou o
cidadão Carlos Campello a fazer subscrição pública para reconstruí-la.
Conseguiu seu objetivo e, em 26 de outubro de 1902, inaugurou as obras com
festa, banda de música e fogos de artifício. Carlos ficou tão emocionado com o
evento, que enfartou e morreu ali mesmo (tornando-se o primeiro utilizar a capela
mortuária). Com o passar do tempo, o cemitério ficara pequeno (tão pequeno que
já em 31 de agosto de 1900 a
Câmara Municipal aprovara proposta do vereador Joaquim Serrado para venda de terrenos
de propriedade dela e a aplicação dos recursos na ampliação da necrópole, o que
não ocorreu) para a cidade e, por isso, foi ampliado em 1917 com a compra, pela
prefeitura, de terreno contíguo de cerca de dois mil metros quadrados, ao
fazendeiro Joaquim Capote (patrono da Estrada do Capote, em Tribobó). A parte
ampliada foi inaugurada em 26 de maio daquele ano, pelo prefeito Artur César de
Andrade Júnior.
Mausoléu do Cônego Goulart, emancipador do município, no Cemitério de São Gonçalo (Autor: Jorge Cesar Pereira Nunes; data: 10/03/2010). |
É lá que
está um dos principais monumentos da cidade. Em 11 de março de 1903, faleceu o
cônego Goulart, figura exponencial da emancipação do município, ex-deputado
provincial e estadual, ex-senador estadual e ex-vereador, que doou aos pobres a
sua parte na herança deixada pelos pais, donos da Fazenda da Luz e de vários
outros imóveis. Em 24 de abril daquele ano, foi constituída comissão para a
construção de seu mausoléu, dela fazendo parte Francisco Rodrigues de Miranda
(dono de O Fluminense), Manuel Antônio Álvares de Azevedo Sobrinho (dono de A
Capital), Alfredo Mariano de Oliveira (irmão do poeta Alberto de Oliveira),
capitão de mar e guerra Joaquim Francisco Correia Leal (depois, almirante),
Alfredo Azamor, José Pinto de Araújo Corrêa, Osório da Silveira e Manuel
Benício. Arrecadados um conto e 15 mil réis, foi a obra projetada pelo artista
Inácio José de Souza e executada pela firma José Vieira da Costa, do Rio de
Janeiro, RJ. Tinha 3m10cm de altura (hoje diminuída pelos sucessivos aterros da
área) e a inscrição “Bom, justo e caridoso” na cruz estilizada e, sobre a
campa, “Cônego Goulart – O Cônego João Ferreira Goulart nasceu a 12 de outubro
de 1844, neste município, e faleceu a 11 de março de 1903. Filho legítimo de
Manoel Ferreira Goulart e dª Clara Maria Goulart. Homenagem de seus amigos”. A
inauguração ocorreu a 13 de novembro de 1904, presentes, entre outros, o
ex-governador Francisco Portela e o desembargador Ventura de Albuquerque. Pela
família, falou Joaquim Luiz Soares, Alfredo Azamor leu poema em memória de
Goulart e o coronel (da Guarda Nacional) Belarmino Ferreira da Silva, em nome
da comissão, concluiu com uma frase, séria no momento e irônica hoje: “entrego
este mausoléu aos cuidados do Município”.
Se tem
sido desrespeitoso o tratamento à memória de Goulart, ao longo destes anos,
pela falta de manutenção de seu jazigo, o mesmo não ocorreu com a menina Leonor
Brandão (descendente do médico Luiz da Silva Brandão, um dos mais influentes na
Corte e em São Gonçalo,
de cujo sobrenome surgiu a denominação da Ponte e do Rio dos Brandões, depois
Brandôas e, hoje, Brandoa, no singular), falecida em 16 de setembro de 1905,
cuja sepultura é um marco de arte tumular e está intacto, ao menos até o
princípio de 2012, quando lá estive. Ali está a obra do escultor italiano
Francesco Orlandi Petrucci (nome depois aportuguesado para Francisco Orlandi
Petrúcio), que chegou ao Brasil por volta de 1876, trabalhou com Jerônimo
Henrique de Castro na construção do mausoléu do Barão de São Gonçalo no
cemitério do Carmo, no Rio de Janeiro, RJ, e abriu sua própria oficina em Niterói. Ele e
Jerônimo foram os últimos remanescentes da arte tumular italiana entre os
fluminenses.
Como há o
cemitério nacional, o São Francisco Xavier, no Rio, por ali estarem os restos
mortais das principais figuras do Império e do princípio da República, e em
Niterói há o cemitério histórico de Maruí, onde repousa a maioria dos
governantes fluminenses e de outras personagens de relevo, como o poeta francês
Charles Ribeyrolles, assim também o de São Gonçalo é histórica e artisticamente
importante por ter em suas sepulturas os despojos de grande número de prefeitos
gonçalenses e de outras figuras de destaque na vida da cidade.
Pode-se
dizer o mesmo do Cemitério de Cordeiros, hoje chamado de Santa Isabel, onde
estão sepultados numerosos membros da família do presidente (governador)
Alfredo Backer, cujo princípio remonta ao século XIX, quando, em 12 de março de
1842, o fazendeiro Lourenço Lopes de Jesus doou à província 50 braças de terras
para a construção da Matriz local, ensejando a criação da freguesia. Acontece
que a comunidade não fez nada durante os 16 anos seguintes, obrigando a Câmara
Municipal de Niterói, em nove de dezembro de 1858, a optar por outro
local (Pachecos) para a instalação da matriz e de um cemitério. O desenvolvimento
destes levou a reclamações e, sobretudo, a que a sociedade local arregimentasse
recursos próprios para as obras que deveria ter feito muito antes. O cemitério
foi o primeiro construído e quase teve seus sepultamentos suspensos em seis de
novembro de 1875, quando o vereador Duque Estrada Júnior requereu à Câmara
Municipal de Niterói que ali não mais houvesse enterramentos, porque outra
necrópole já estava funcionando em Pachecos. Sua proposta não foi adiante, devido à
oposição da comunidade cordeirense, que achava muito distante o outro
cemitério, com vários rios impossíveis de serem atravessados em dias de chuva.
Herma de homenagem ao Barão de São Gonçalo, no Cemitério de Pacheco (Autor: Jorge Cesar Pereira Nunes; data: 10/03/2010) |
Igualmente importante é o Cemitério de Pachecos, que (diz a lenda) tem
uma preciosidade, qual seja o coração do Barão de São Gonçalo em um monumento
que só não foi abaixo graças ao ex-vereador Altino da Silva Diaz André, cultor
da História. Na década de 1980, foi lá honrar a memória de seus antepassados
quando viu que dito monumento começava a ser posto abaixo. Interrompeu as
obras, chamou o administrador e dele recebeu um argumento chocante: isso é
muito velho. Com a ameaça de recorrer à Justiça e de chegar ao desforço físico,
se tanto fosse necessário, impediu a sandice. A história daquele cemitério
também é cheia de conflitos: inicialmente, a construção deveria ter sido em
Cordeiros, mas a Câmara Municipal de Niterói recebeu a oferta de doação de
vasta área da então fazenda de Nossa Senhora da Penna, de propriedade de
Custódio Francisco Figueiredo Ramos e Matilde Leonor da Costa Ramos e a
aprovou, por ser, a seu juízo, melhor localizada. Em 14 de outubro de 1855, o
Barão de São Gonçalo informava ao presidente da província Luiz Antônio Barbosa
que a necrópole estava pronta e iniciaram-se ali os sepultamentos.
Resta o
Cemitério de São Miguel (entre os públicos) que, por ser relativamente recente,
ainda não tem tanta história nem arte como os demais. Mesmo assim, lá estão os
despojos de grande parte das vítimas do incêndio do Circo Norte-Americano
(aliás, motivo de sua criação), em 17 de dezembro de 1961, os do prefeito Jayme
Mendonça de Campos e os de George Savalla Gomes, o palhaço Carequinha, artista
circense de renome nacional.
Monumento em memória aos judeus vítimas do holocausto nazista, no Cemitério Israelita de São Gonçalo (Autor: Jorge Cesar Pereira Nunes; data:11/03/2010). |
Há três
cemitérios particulares na cidade: o Parque da Paz, em Pachecos, inaugurado em
setembro de 1993, onde está sepultado o ex-prefeito e ex-governador Geremias de
Mattos Fontes (é em tal cemitério que está surgindo uma nova prática fúnebre:
como a administração proíbe colocar cruzes e acender velas, os parentes dos
mortos passaram a instalar cataventos, criando-se uma nova forma de arte
popular tumular); o Parque Niterói, apesar do nome ironicamente instalado em Vista Alegre, quase no
limite de São Gonçalo com Itaboraí; e o mais importante deles, do ponto de
vista histórico, que é o israelita, na Rua Sá Carvalho, entre o centro e o
bairro Boaçu, considerada a mais limpa e bem tratada necrópole gonçalense. Seu
terreno foi comprado pela comunidade judaica em 1925, mas o primeiro sepultamento
só ocorreu em 1927. Antes da atual denominação (e mesmo ainda hoje, por uns
poucos, é verdade) aquela via pública era conhecida como Caminho das Almas e o
cemitério como “dos gringos”. A primeira denominação vem do século 19, quando
uma epidemia de peste bubônica varreu a cidade em 1855 e o grande número de
mortos não podia ser sepultado no cemitério que então funcionava em torno da
Igreja Matriz; então, foi usada a área que pertencia à Província desde 1852
para que ali fossem feitos enterramentos excedentes, dando origem ao Mato das
Almas e, depois, Caminho das Almas. O Cemitério Israelita de São Gonçalo é
administrado pelo Centro Israelita de Niterói, presidido por Jacob Lipster,
médico que durante vários anos atuou no Pronto Socorro gonçalense. Além de
túmulos com inscrições em hebraico, ele conta, junto a uma amendoeira mais que
centenária, com um memorial dedicado às vítimas do holocausto praticado pelo
regime hitlerista. No local está enterrado um sabão feito com gordura humana
pelos nazistas e ali há uma solenidade anual em memória das vítimas do holocausto,
celebração realizada em data móvel, entre o Ano Novo Judaico (Rosh Hashna) e o
Dia do Perdão (Yom Kipur).
Fontes: Relatórios dos Presidentes da Província
do Rio de Janeiro de 03-05-1852, p. 87; de 26-11-1865, p. 80; de 15-10-1868,
anexo das Câmaras Municipais, p. 6; e de 08-09-1877, p. 19.
Legislação
provincial, de 1835 a
1889.
Emmanuel de
Macedo Soares, pesquisador em História.
O Fluminense,
29-10-1902, p. 2; 12-03-1903, p. 1; 25-04-1903, p. 1; 14-11-1904, p. 1; e
26-05-1917, p. 1.
Correio
Official da Província do Rio de Janeiro, nº 33, 12-03-1842, p. 2.
A Pátria,
07-03-1856, p. 3; 23-06-1872, p. 4; 27-08-1874, p. 3; 28-08, p. 4, 02-09, p. 3,
30-09, p. 3, 06-11, p. 2; 22-11, p. 2, e 11-12-1875, p. 3; 19-02, p. 2, e
11-07-1876, p. 3.
Correio
Mercantil, 24-09-1857, p. 1; e 17-03-1859, p. 2.
A Nação,
16-11-1874, p. 2.
Ata da
Assembleia Legislativa Provincial, sessão de 23-09-1857.
Atas da Câmara Municipal de Niterói,
sessões de 09-12-1858; 20-06-1872; 29-07-1874; 26-07, 19-10 e 30-10-1875.
A Capital,
13-10-1904, p. 2 e 3; 04-11-1904, p. 2; e 14-11-1904, p. 1.
Jazigo nº 200,
da quadra 2, do Cemitério de São Gonçalo.
Jacob Lipster,
médico, presidente do Centro Israelita de Niterói.
Alcides Carneiro do Nascimento,
funcionário do Cemitério Israelita de São Gonçalo.
É, também, autor das seguintes obras:
A criação de municípios no Estado do Rio de Janeiro;
Chefes de Executivo e Vice-Prefeitos de São Gonçalo;
Dirigentes Gonçalenses - Perfis;
Crônicas Históricas Gonçalenses I e II.
Jorge Cesar Pereira Nunes é Bacharel em Direito, Jornalista e Pesquisador da História de São Gonçalo.

A criação de municípios no Estado do Rio de Janeiro;
Chefes de Executivo e Vice-Prefeitos de São Gonçalo;
Dirigentes Gonçalenses - Perfis;
Crônicas Históricas Gonçalenses I e II.
Sou bisneto de Francesco Orlandi Petrucci, estou tentando a cidadania italiana, porém não estou conseguindo mais informações sobre eles. Poderiam ajudar-me?
ResponderExcluirVamos verificar e lhe retornaremos, abcs por ora.
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