Texto de Agliberto Mendes
A convivência entre moradores e traficantes não foi sempre violenta e assustadora como é, nos dias de hoje. Em comunidades dominadas pelo hoje chamado "movimento", houve um período de banditismo romântico, quando era bom morar em áreas controladas por esses grupos. No Rio de Janeiro, bairro de Rocha Miranda, no morro do "Faz quem Quer", o nosso personagem de hoje, "Tiquinho do bem", viveu tempos assim.
Tiquinho do bem", então com 14 anos, não sabia o que era cocaína e nunca viu um fuzil. Não havia armamento pesado, guerra entre facções, crack, toque de recolher, exploração de gatonets, de pontos de venda de botijão de gás,linhas de vans nem ocupação de casas da comunidade, com a expulsão de moradores. Os bandidos de então eram nascidos e criados na região, conheciam e eram conhecidos pelos moradores, havia laços de amizade e parentesco. Os problemas de cada morador eram problemas deles também, aos quais apresentavam soluções imediatas. Acabou o gás de alguém? Não tem dinheiro? "moleque, compra um botijão, agora, e entrega na casa de Dona Fulana, diz que ela não deve nada". Não havia assaltos, não era permitido, as meninas podiam chegar dos bailes, na madrugada, não eram incomodadas, era livre o acesso a prestadores de serviços públicos, como carteiros e entregadores. Por causa da pobreza, viver era difícil, mas não era violento, perigoso e assustador, como nos dias de hoje.
O único produto à venda era a maconha, o preço de um cigarro era equivalente a 1 dólar, daí surgiu o verbo "endolar" a droga.
Como não existia armamento pesado, ter uma pistola, ao invés de um 32 ou 38,era demonstração de poder e, geralmente, o traficante que tinha pistola também desfilava com várias namoradas.
Aliás, isso era um fenômeno curioso, eles "paqueravam" as meninas ainda com pouca idade e logo, logo, quando o corpo da moça escolhida permitia, era adicionada ao harém, mas os pais e mães ficavam contentes, pois, dentro daquela forma de "Estado", ter uma filha namorada de traficante significava ascenção social, essas pessoas se tornavam poderosas, nunca seriam incomodadas por alguém, de jeito nenhum.
Uma vez por mês, um mensageiro de confiança ou, até mesmo, algum parente do tráfico, ia na Delegacia Distrital da área entregar o famoso "pp" (propina policial) e a vida seguia tranquila, com todos; moradores, traficantes e policiais, seguindo a rotina do dia a dia. Às vezes acontecia algum desentendimento relacionado a valores da "pp", então os policiais invadiam o morro, disparavam alguns tiros de 32 ou 38, faziam ameaças e um novo acordo era estabelecido, vida que segue.
Não era uma época de crianças obesas, como as de agora, era uma geração de raquíticos, mal alimentados desde o nascimento, então o apelido de "Tiquinho" era usual, existiam vários Tiquinhos. Era necessário o aposto, Tiquinho do trânsito, Tiquinho da marmita, até havia um tal de Tiquinho gordo que, na verdade, era um magrelo barrigudinho. Nesse cenário, o nosso personagem era conhecido como o Tiquinho da bola, por causa da sua paixão, o futebol. Com o passar do tempo, os Tiquinhos foram, quase todos, trabalhar no tráfico, menos o nosso, o da bola, que acabou sendo chamado pelo codinome Tiquinho do bem, pela sua recusa em trabalhar em algo que ele achava errado, ligado ao mal.
O filho de Dona Ruth preferia ganhar seu dinheirinho honesto, como camelô, próximo à estação de trens de Cascadura. Magrelo, cara de menino desprotegido, não era difícil conquistar a freguesia. Foi testemunha, ali em Cascadura, de muitas histórias interessantes, como, por exemplo, a barraqueira Maria Rita, que, com o dinheiro que faturava, de segunda a domingo, fosse com sol ou chuva, mantinha a sua filha cursando uma faculdade. Essa universitária e o seu namorado tinham vergonha de Maria, por causa do seu trabalho. A mesma Maria Rita, conhecida como "mulher do santo", por causa de suas práticas afro religiosas, ameaçou um fiscal que vivia extorquindo os trabalhadores da área, usando o seguinte expediente: se vc. não parar de me pedir dinheiro, vou colocar uma ziquizira em seu corpo, que tu vai passar o dia inteiro, coçando o saco, na frente de todos e em qualquer lugar. O fiscal achou melhor não se arriscar e, nunca mais extorquiu Maria Rita.
Tiquinho conviveu com barraqueiro que era alcóolatra, outro cheirava rapé, tinha aquele viciado em apostar em público pagante nos estádios e toda uma galeria de personagens que enriquece o dia a dia de qualquer cidade. Mas a maior curiosidade mesmo era o Zeca, barraqueiro nordestino, magrelo, que faliu. Quando viu que tudo estava perdido, pegou o último dinheiro que tinha, foi a Juiz de Fora e comprou meias de "refugo", nas fábricas. Trouxe e revendeu para barraqueiros aqui do Rio de Janeiro. O negócio deu tão certo que, em pouco tempo, Zeca ajeitou a sua vida, comprou carro novo e nunca mais precisou ter barraca em ponto fixo, nas ruas. Se transformou em um bem sucedido revendedor. O defeito mais comum em meias de refugo é que um pé é mais curto que o outro. A estratégia é simples, o vendedor exibe a qualidade do produto, esticando os dois pés, segurando pelas pontas, o que faz com que fiquem do mesmo comprimento. O freguês é convencido e, algum tempo após, o pé mais curto volta ao seu tamanho normal.
Mas Tiquinho do bem nunca foi dono de barraca, nem houve tempo prá isso, começou o seu ofício da forma mais tradicional, exibindo os produtos no chão, em um tabuleiro, ou protegido por uma pano com quatro pontas, chamado para quedas. Tem que trabalhar de olho no fiscal, na época, o chamado "rapa". O para quedas era o mais eficiente, surgiu o "rapa", bastava levantar as quatro pontas, o material ficava protegido, o pano se transformava em uma bolsa, aí era só correr.
O nosso personagem gostava de vender óculos escuros, não sabia se por causa do lucro ou se gostava de falar o texto, quase cantado, que apregoava : "campos e praias, descanso prá vista, esportes, passeios, pic niques, viagens, campos e praia..."
Em um determinado momento surgiu uma novidade e camelô que se preza não resiste a coisas novas. Vou explicar: naquela época não havia produtos importados no Brasil. Na verdade, tudo que era de fora do País era contrabandeado, inclusive as famosas calças Lee, o primeiro jeans que nós brasileiros conhecemos. Também estava na moda as lâminas inglesas de marca Wilkinson, mas os preços dessas lâminas eram proibitivos para o trabalhador comum. Então, surgiu, do nada, em plena Rua da Alfândega, as lâminas Solinger, alemãs, que, claro, se fossem transformadas em pombos correios, nunca voariam para aquele País, já que esses pombos apenas retornam ao lugar de origem.
Tiquinho ficou entusiasmado; em sua mente juvenil, se imaginou rico, vendendo giletes, morando com Dona Ruth em uma linda casa e sendo possuidor de um carro novo, muito, mas muito mais bonito mesmo do que o carro do Zeca das meias, o barraqueiro nordestino falido que, em um golpe do destino, voltou à vida como um revendedor respeitado. E, em um dia de terça feira, às 8 da manhã, no calçadão de Cascadura, Tiquinho do bem apregoava a grande novidade: "lâminas solinger alemãs, uma lâmina, quarenta barbas". Na verdade, o texto, aqui, não é capaz de reproduzir a beleza daquela quase cantoria, imagine algo mais ou menos assim: "Lâminas solinnnnnnnnnnnger alemãs, uma lâmina, quarennnnnnnnnnnnnnnnnnnnta barbas".
O início foi sensacional; Tiquinho, cada vez mais, acreditava que ia dar um salto em sua vida, mas eis que surge o imprevisto. Vamos tratar esse imprevisto como um "homem barbudo, mas muito barbudo mesmo". Mas não era uma barba qualquer, não eram fios, não eram pelos. Tiquinho viu aquela barba como algo assim, indestrutível, aquele homem alto e forte, no meio da multidão, podia significar o fim do seu comércio. Se fosse Carlos Drummond de Andrade, o inesquecível poeta, Tiquinho, com certeza, escreveria: "tinha uma barba no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma barba". Nosso personagem era um adolescente esperto, fez o que tinha que fazer, parou de apregoar o produto e desviou os olhos do barbudo, tipo assim, cara de paisagem, olhando algo distante. Mas não adiantou, aquela barba devia mesmo ser um grande problema na vida daquele homem e ele imaginou haver encontrado a solução para tal desconforto. Parou, perguntou o preço, Tiquinho falou: "Hi, moço, é caro", o homem: "não interessa, vou levar". E assim aconteceu.
Foi um dia difícil, Tiquinho foi embora mais cedo, não dormiu direito. Se viu assaltado por maus pressentimentos. Em seus pesadelos, um enorme elefante, com o corpo coberto de pelos e cheio de cortes, corria em sua direção. Quando a tromba abraçava o seu pescoço, o jovem acordava, coração disparado, o corpo lavado em suor. No dia seguinte, sabia o que era prá fazer, mudar de ponto por algum tempo, retornar um ou dois meses após. Mas hoje, passados mais de 60 anos, nosso personagem não sabe por que, dia seguinte, estava no mesmo lugar, vendendo a mesma mercadoria, e olhando todas as pessoas na multidão, procurando o barbudo.
E como em um duelo, no lugar marcado, no meio da multidão, ele surgiu, a cara toda cortada, alguns pelos de barba ainda em seu rosto. Tiquinho sentiu saudades do pesadelo, pois, agora, não era um elefante, não era sonho e não havia tromba. Era real, era um homem alto e forte, braços mais compridos que trombas, expressão desfigurada, pelos cortes e pela raiva, em sua direção. Não houve tempo para o garoto dizer: "eu troco, moço". O homem pega em seu braço, com força, se aproxima do seu ouvido direito, Tiquinho pede em oração para só apanhar e não morrer, mas Deus protege as crianças que trabalham e o barbudo, com voz firme e grossa desabafa: "garoto, eu não vou fazer nada com vc., sei que está aqui, tentando levar um dinheiro prá casa,mas eu só quero te dizer uma coisa, uma só coisinha: eu não sou idiota, sabia que essa lâmina não ia fazer quarenta barbas, mas, porra, não podia, pelo menos, fazer uma, a primeira?
O nosso personagem não acredita, abre os olhos, devagar, o elefante foi embora, não é pesadelo, é a vida real e está tudo bem.
No dia seguinte, Tiquinho do bem, o filho de Dona Ruth, chega mais cedo em Cascadura e, feliz da vida, como nunca se sentiu, cantarola: campos e praias, esportes, passeios, pic niques, viagens, campos e praias, descanso prá vista............
Fala Mendes Tiquinho! Gostei da sua estória , ainda bem que optou por vender lâminas! Parabéns!
ResponderExcluirValeu, grato, ainda bem mesmo, rsrsrsrsrs, abraços.
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